
Elisa Vasconcellos Torres Paes de Barros é educadora parental certificada em Educação Emocional, Sexual e Prevenção de Abusos (ESEPAS), com formação em Neurociência do Trauma e Infância (NTI).
Mais de 1,6 milhão de crianças e adolescentes trabalham no Brasil — a maioria de forma ilegal. Em Mato Grosso, são quase 43 mil. O que parece estatística, na prática, é sentença de futuro roubado. Criança que trabalha perde a infância. E, muitas vezes, perde também a vida. Isso não é mérito nem disciplina — é falência do Estado, abandono familiar e omissão social.
Entre as formas mais brutais de trabalho infantil está a exploração sexual de crianças e adolescentes. Isso mesmo: meninas e meninos são vendidos em troca de comida, abrigo ou alguns trocados — uma prática que representa a absoluta negação da infância. Em Mato Grosso, segundo dados do Ministério Público do Estado (MPMT), mais de 16 mil crianças e adolescentes foram identificadas em 2023 nas piores formas de trabalho infantil, entre elas o trabalho forçado, atividades perigosas e a exploração sexual comercial, conforme previsto pela Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e pelo Decreto nº 6.481/2008.
A pornografia infantil se espalha por aplicativos com milhões de usuários impunes. Em 2024, o Brasil passou a integrar o ranking dos cinco países com maior volume de exploração sexual infantil virtual no mundo, de acordo com a Internet Watch Foundation (IWF).
Apesar de termos uma das legislações mais avançadas do mundo, os crimes continuam crescendo. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), a exploração sexual infantil aumentou 24,1% entre 2022 e 2023, com 1.255 ocorrências registradas — embora especialistas reconheçam que esse número representa apenas a ponta do iceberg.
Se a Polícia Rodoviária Federal já mapeou mais de 9 mil pontos vulneráveis à exploração sexual infantil só nas rodovias federais, como temos apenas 1.255 ocorrências registradas? É que este é um crime “aceito”, naturalizado pela prática de uma sociedade que se proclama moralmente reta, mas fecha os olhos quando a violência atinge os vulneráveis.
A dimensão digital da violência também revela uma realidade devastadora. Segundo a SaferNet Brasil, mais de 2,6 milhões de usuários brasileiros participaram de grupos com conteúdo de pedofilia no Telegram apenas no primeiro semestre de 2024. Em 2023, a Central Nacional de Crimes Cibernéticos da organização recebeu mais de 71 mil denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil — um aumento de 77% em relação a 2022.
Isso não é um caso isolado. É rede. É sistema. E quem lucra com isso tem nome, rosto, poder e proteção.

Violência institucionalizada
O caso do médico e vereador Thiago Bitencourt, preso em Canarana (MT) por abuso sexual e posse de pornografia infantil, escancara o que muitos se recusam a admitir: até quem deveria proteger, viola. E o Brasil não está sozinho nessa. Nos Estados Unidos, o escândalo envolvendo Jeffrey Epstein revelou conexões com altos cargos da elite política. Parte dos documentos permaneceu retida por anos. Em meio a isso, Elon Musk chegou a usar sua rede social X para questionar por que o ex-presidente Donald Trump nunca liberou os autos completos — supostamente por estar citado nos processos.
“Até quando julgareis injustamente e favorecereis os ímpios?
Fazei justiça ao pobre e ao órfão; justificai o aflito e o necessitado.
Livrai o pobre e o necessitado; tirai-os das mãos dos ímpios.”
(Salmo 82:2-4)
Jesus colocou as crianças no centro. Ignorá-las é negar o Evangelho. E quem cala diante da injustiça trai a fé que professa.
Leis no papel, omissões na prática
A Constituição Federal (art. 227) estabelece que a infância deve ter prioridade absoluta. A Lei nº 13.431/2017 criou protocolos para escuta especializada e atendimento humanizado de crianças e adolescentes vítimas de violência. Mas na prática, o que falta não é legislação — é ação. Sem capacitação contínua da rede, implementação efetiva, fiscalização rigorosa, ampla divulgação e coragem política, essas garantias não saem do papel. A infância, que não tem voz nas urnas, segue relegada ao fim da fila dos orçamentos públicos. Isso precisa mudar. Se proteger crianças é dever constitucional, então prioridade absoluta não pode ser promessa vazia — tem que ser compromisso real, refletido em políticas públicas concretas e investimento com urgência.
Criança trabalhando não é formação de caráter — é violação de direitos. Segundo o IBGE (PNAD Contínua 2023), o trabalho precoce reduz em 30% as chances de uma criança concluir o ensino fundamental. A OIT alerta: trabalho infantil aumenta o risco de acidentes, doenças físicas e transtornos mentais. A Fiocruz é ainda mais clara: está ligado à automutilação, suicídio e mortes evitáveis na juventude. Não existe mérito onde há violação. E permitir que crianças abandonem a escola para trabalhar é assinar, como sociedade, um pacto com a exclusão. Isso não é metáfora — é estatística, é ciência, é realidade.
Relatório divulgado recentemente pela Unicef e OIT confirmam o fracasso global: a meta da Organização das Nações Unidas (ONU) de erradicar o trabalho infantil até este ano não foi cumprida. Ainda hoje, 138 milhões de crianças trabalham no mundo, sendo 54 milhões em atividades perigosas.
A engrenagem da impunidade
A responsabilização precisa alcançar quem financia e sustenta esse mercado: exploradores sexuais, plataformas digitais omissas, empresários cúmplices, e instituições que fingem não ver. Muitas vezes, os responsáveis por trabalho infantil recebem apenas multas administrativas — e continuam livres. No caso da exploração sexual, embora a lei preveja pena de reclusão, a lentidão processual e os acordos judiciais favorecem a impunidade.
A engrenagem gira porque é lucrativa. E quem não combate, permite.
Só 10% dos casos são denunciados
A Childhood Brasil aponta que apenas 10% dos casos de abuso e exploração sexual são denunciados. Isso nos faz perguntar: onde estão os outros 90%? Onde estão essas crianças? Quem está ouvindo — ou silenciando — essas histórias?
É urgente repetir: criança não se prostitui. Criança é explorada. Ponto. Não existe “escolha” onde há miséria, medo, negligência e ausência de proteção institucional. Quando uma criança está na rua, em situação de exploração, não é apenas a família que falhou — é a escola que não acolheu, o Estado que não garantiu, a rede que não funcionou, a sociedade que virou o rosto. Mesmo quando dizem que estão ali por “vontade própria”, essa “vontade” é construída a partir do abandono coletivo. Nenhuma criança tem maturidade legal, emocional ou psíquica para consentir com práticas sexuais.
Quem explora é criminoso.
Quem ignora, consente.
Quem culpa a vítima, perpetua a violência.
Trauma não tratado vira doença
O médico Gabor Maté, referência mundial em trauma infantil, afirma: “dor não tratada vira doença”. O abuso sexual molda o cérebro, distorce os afetos e destrói futuros. Pensar que isso é um problema “do outro” é ilusão. A conta chega — mais cedo ou mais tarde.
E não apenas no plano afetivo. Segundo o economista e Prêmio Nobel James Heckman, cada US$ 1 investido na primeira infância retorna até US$ 7 para a sociedade, em saúde, educação e produtividade. Ignorar a infância é também um erro econômico grave.
A sociedade precisa decidir de que lado está
A prevenção é possível. A proteção é dever. A denúncia, obrigação. Mas nenhuma dessas frentes avança sem responsabilidade compartilhada. Empresas, agronegócio, turismo — quem lucra, também precisa proteger. Criar protocolos, treinar equipes, fiscalizar fornecedores e abrir canais de escuta são medidas que evitam escândalos, fortalecem reputações — e salvam vidas. Mas tudo isso exige o que anda em falta: liderança e coragem.
Quem financia, constrói ou contrata também tem sangue nas mãos se se omite
Não dá mais para esperar milagres do Estado. A proteção da infância é uma engrenagem que precisa de todos os dentes para funcionar: empresários, governos, comunidades e financiadores. Cada um com um papel. Nenhum com o direito de cruzar os braços.
Financiadores
Quem libera o dinheiro precisa liberar com responsabilidade. Bancar um projeto sem exigir cláusulas que blindem crianças da exploração é escolher o lucro e ignorar a infância. Financiadores sérios já tratam proteção infantil como critério mínimo para aprovar ou renovar contratos.
Empresas
Empresas que se dizem sustentáveis precisam tirar a infância dos relatórios e colocá-la no centro da operação.
• Assumir compromisso público com os direitos da criança.
• Garantir recursos para ações concretas — não apenas para marketing.
• Exigir cláusulas protetivas em todos os contratos.
• Monitorar resultados reais — não apenas os balanços.
Gerenciadores e fornecedores
Não adianta o discurso vir do topo se a base terceiriza o problema. O gerenciador do projeto deve assegurar que todas as frentes da obra — direta ou terceirizada — estejam comprometidas com a proteção da infância.
Fornecedores precisam:
• Treinar equipes;
• Seguir a política da empresa-mãe;
• E influenciar outros contratados a fazerem o mesmo.
Poder público local
É o primeiro a ser cobrado e, muitas vezes, o primeiro a falhar. Sem Conselho Tutelar estruturado, sem CREAS funcionando, sem rede de proteção ativa, o discurso constitucional morre na praia. Quando o Estado se omite, a impunidade se instala.
Comunidades e famílias
O território precisa deixar de ser campo neutro. As famílias, as escolas, as lideranças locais têm o dever de ouvir e proteger. A violência não nasce do nada — ela brota no silêncio e na omissão do entorno.
Organizações da sociedade civil
São o elo entre a indignação e a ação. Denunciam, fiscalizam, pressionam o poder público e mostram ao mercado que existe quem observe, cobre e lute por justiça.
Enquanto for difícil falar, será fácil acontecer.
Abusadores se alimentam do tabu, da ignorância, da covardia.
Esclarecer é iluminar. Onde há luz, o abuso não sobrevive.
Falar é romper o ciclo. Silenciar é ser cúmplice.
Escolha de qual lado você está.
Como denunciar:
• Disque 100 – atendimento anônimo e gratuito, 24h
• Conselho Tutelar de Cuiabá: (65) 99206-6741
• Delegacia da Criança (DEDDICA): (65) 3613-5630
• Ministério Público da Infância – MT: (65) 3613-5100
Quando protegemos uma criança protegemos o futuro inteiro.
Elisa Vasconcellos Torres Paes de Barros é educadora parental certificada em Educação Emocional, Sexual e Prevenção de Abusos (ESEPAS), com formação em Neurociência do Trauma e Infância (NTI).

Artigo publicado no PNB Online