
Enquanto o Congresso Nacional e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) debatem a melhor forma de enfrentar o crime organizado, as facções criminosas seguem expandindo suas atividades e diversificando estratégias. No mês passado, um exemplo da sofisticação dessas organizações foi a apreensão de um semissubmersível no litoral de Marajó, no Pará. Segundo as investigações, a embarcação seria “irmã” de outra interceptada na costa de Portugal.
O cenário é de crescimento nas estatísticas. O Brasil registrou, em 2024, um total de 182,95 mil ocorrências de tráfico de drogas — uma alta de 0,6% em comparação com 2023. Na média, são cerca de 500 casos por dia, segundo o Mapa da Segurança Pública, da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp).
Três das cinco regiões do país apresentaram aumento nas ocorrências. O Centro-Oeste liderou com uma alta de 12,62%, seguido pelo Sul (4,96%) e pelo Nordeste (2,3%). Em números absolutos, São Paulo foi o estado com mais registros, totalizando 35,78 mil casos em 2024, seguido pelo Rio de Janeiro (29,47 mil) e Minas Gerais (20,44 mil).
Além do número de casos, o volume de drogas apreendidas também cresceu. Em 2024, foram interceptadas 1,41 milhão de quilos de maconha, um aumento de quase 10% em relação a 2023. No caso da cocaína, a repressão também avançou, principalmente nas regiões de fronteira. Mato Grosso do Sul liderou as apreensões com 579,42 toneladas, seguido por Paraná (482,87 t), São Paulo (147,24 t), Santa Catarina (39,93 t) e Amazonas (28,2 t).
Segundo a Polícia Federal, o impacto financeiro imposto ao crime organizado também aumentou. No ano passado, as ações da PF geraram um prejuízo de R$ 5,6 bilhões para as facções, um salto de 70% em relação a 2023.
Ainda assim, os números estão longe de abalar a estrutura financeira desses grupos. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) estima que o faturamento anual das organizações criminosas seja da ordem de R$ 146 bilhões apenas em produtos explorados em 2022. Só o fluxo ilegal de cocaína dentro do Brasil movimentaria cerca de R$ 335 bilhões.
Do físico ao virtual: o crime híbrido
A atuação das facções hoje vai muito além do tráfico de drogas e armas. As organizações criminosas se tornaram “híbridas”, operando tanto no mundo físico quanto no digital. A infiltração em setores formais da economia, como mineração, mercado imobiliário, transporte público e comércio de combustíveis, é usada para lavagem de dinheiro.
O avanço tecnológico também tem sido explorado. Grupos criminosos passaram a utilizar inteligência artificial, criptomoedas e até o metaverso para atividades ilícitas. Um levantamento da Fondazione Magna Grecia, na Itália, mostra como o crime organizado no Brasil adapta-se rapidamente às novas tecnologias.
Outro reflexo dessa digitalização é o aumento de golpes virtuais. Em 2023, o país registrou mais de 937 mil casos de furto e roubo de celulares — base para fraudes envolvendo contas bancárias e transferências via PIX. Facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) chegaram a criar verdadeiras centrais de golpes telefônicos.
A lavagem de dinheiro também alcançou outro patamar de sofisticação. Segundo o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco de São Paulo, algumas organizações chegaram a montar suas próprias “fintechs” para disfarçar operações financeiras ilícitas. O MP estima que o PCC tenha lavado cerca de R$ 6 bilhões usando esse tipo de estrutura.
Expansão internacional e controle de rotas
A disputa por territórios e rotas segue sendo um dos principais motivos de conflito entre as facções. A Amazônia Legal tornou-se uma das áreas mais estratégicas para o narcotráfico, com disputas violentas envolvendo dezenas de facções.
O CV, por exemplo, ampliou operações internacionais, especialmente em direção à Europa, onde o valor da cocaína é muito superior ao do mercado brasileiro. Apenas pelo Porto de Santos, estima-se que cerca de quatro toneladas de cocaína saiam mensalmente para a Europa, sendo que apenas 10% desse volume são efetivamente apreendidos.
Casos como o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips, em 2022, no Vale do Javari, escancaram os riscos da presença de facções na Amazônia. As investigações apontaram ligação direta com o crime organizado transnacional, envolvido em pesca e caça ilegais.
Disputa política: crime organizado é terrorismo?
Enquanto os números e a complexidade do crime organizado crescem, o Congresso discute uma mudança legislativa que pode redefinir a forma como o Estado reage. O Projeto de Lei nº 1.283/2025, do deputado Danilo Forte (União-CE), propõe ampliar o conceito de terrorismo para incluir ações de facções criminosas e milícias.
Forte argumenta que esses grupos “tolhem a liberdade de ir e vir, de votar e de empreender” e que o Brasil precisa superar o “tabu” de não chamar de terrorismo o que já seria assim classificado em países vizinhos como Paraguai e Argentina.
O parlamentar defende que, com a nova classificação, a Polícia Federal teria mais ferramentas legais e o Brasil poderia estabelecer sanções econômicas internacionais mais duras contra as facções.
Por outro lado, a proposta enfrenta forte resistência de especialistas. O advogado Fernando Parente, professor de Direito, afirma que a equiparação entre crime organizado e terrorismo é uma distorção jurídica perigosa. “São coisas completamente distintas, tanto no mundo dos fatos quanto no mundo jurídico”, disse.
Carolina Grillo, da Universidade Federal Fluminense (UFF), também criticou a proposta. Para ela, a mudança teria mais efeito midiático do que prático. “O trabalho real de inteligência e desmantelamento é silencioso. Já as mudanças legislativas servem muito mais para dar uma resposta política rápida do que para trazer resultados concretos”, afirmou.
Enquanto o embate político continua, o crime organizado segue avançando, com novas rotas, novas tecnologias e um poder econômico cada vez maior.