
Caroline Souza/BBC
Coqueiros, mar cristalino e frutos do mar convivem com armas, olheiros e execuções sumárias em alguns dos destinos mais paradisíacos do Brasil. As praias de Jericoacoara (CE), Porto de Galinhas (PE) e Pipa (RN), conhecidas por atrair turistas do mundo inteiro, estão hoje sob o domínio silencioso de facções criminosas que controlam desde a venda de drogas até o “bom comportamento” nas vilas.
Embora ainda pareçam tranquilas aos visitantes, esses destinos operam sob as regras de grupos armados que punem moradores, proíbem roubos contra turistas e mantêm controle absoluto sobre as comunidades locais. Quem vive nas vilas conhece bem os rostos dos “gerentes de boca”, dos “vapores” e dos pistoleiros. Muitos convivem com ameaças, violência e toques de recolher.
“Você interage com eles no mercado, no bar, na rua. É normalizado”, conta Ricardo, morador de Porto de Galinhas. Para preservar o turismo — e, com ele, a principal fonte de renda do tráfico — há um pacto silencioso: não se mexe com os visitantes. Mas isso não impede assassinatos, torturas e sumiços de moradores que descumprem as ordens.
Em Jericoacoara, o caso mais emblemático aconteceu em dezembro de 2024, quando um adolescente paulista foi morto após ser confundido com integrante de uma facção rival. Segundo a Polícia Civil, o gesto que ele fez para tirar uma foto pode ter sido interpretado como um símbolo de facção. Ele estava com o pai e voltava para a pousada quando foi abordado e assassinado.
Pipa também viveu momentos de terror no mesmo mês: três pessoas foram executadas em plena avenida principal da vila. Em Porto de Galinhas, em 2022, a facção local determinou um toque de recolher após uma operação policial que terminou com a morte de uma criança atingida por bala perdida.
Porto de Galinhas: câmeras do crime e toque de recolher
Na comunidade de Salinas, próxima às famosas piscinas naturais, câmeras instaladas por criminosos monitoram a movimentação. Moradores não podem chamar a polícia. Funcionários públicos precisam abaixar os vidros e se identificar para entrar na área.
A facção Trem Bala — que depois passou a se identificar como Comando do Litoral Sul — domina a região desde 2019. A lei deles é clara: sem brigas, sem furtos, sem denúncias. Os conflitos de vizinhos e até disputas familiares são resolvidos por “tribunais do crime”. Em caso de desobediência, há punição com decapitação por tiros de escopeta e sepultamento em manguezais.
O promotor Eduardo dos Santos afirma que a facção é mantida por uma “mão de obra barata”, com jovens sem perspectiva cooptados pelo tráfico. Um projeto do MP tenta oferecer atividades para esses jovens. “Mas as operações policiais acabam prendendo os rivais e fortalecendo ainda mais o grupo dominante”, reconhece.
Pipa: crime com organização e estatuto
No litoral potiguar, a estrutura da facção Sindicato do Crime impressiona pela organização. Jovens em escala de trabalho, com salário e função definida — olheiro, vapores, gerente. Há até um estatuto que proíbe som alto, uso de crack e até traições afetivas. Quem desrespeita é punido.
“É tão organizado que só falta assinar a carteira”, disse um policial. A facção, surgida em 2013 dentro do presídio de Alcaçuz, escolheu Pipa como base estratégica pela presença de turistas com alto poder aquisitivo e por ser a cidade natal de dois de seus fundadores.
A repressão policial mais recente resultou em 97 prisões só em 2024 e R$ 1,3 milhão em prejuízos para o crime. Mas, segundo moradores, a reorganização é rápida. “Tiram um, amanhã tem outro”, resume Cláudia, que mora na vila.
Jericoacoara: entre o silêncio e o medo
No Ceará, a facção Comando Vermelho domina a vila de Jericoacoara desde 2016. Após a morte do adolescente paulista no ano passado, os traficantes reduziram sua presença visível nas ruas. Mas moradores relatam que o poder segue nas sombras — com julgamentos, agressões e intimidações contra quem “olha torto” ou contraria regras.
“Há uma demanda de turistas por drogas e entretenimento, e o tráfico se ajusta a isso. O perfil do visitante mudou e com ele o da criminalidade também”, diz Carla, moradora da vila. Hoje, Jericoacoara lidera o ranking de infrações ambientais no Brasil — reflexo direto da explosão do turismo sem controle.
Casos de violência explícita seguem acontecendo. Em março, uma mulher foi assassinada em frente à principal igreja da cidade. Em dezembro, uma adolescente foi resgatada após ser julgada em um “tribunal do crime” transmitido ao vivo.
Paraíso sob controle
O avanço das facções nesses destinos revela uma falha estrutural dos Estados em garantir segurança pública. A repressão pontual não ataca as causas — e, em muitos casos, agrava a concentração de poder nas mãos das organizações criminosas.
“Esses grupos se estruturam como empresas. Expandem, se organizam, impõem leis próprias e agem com uma racionalidade fria. Para eles, manter o turista seguro é parte do negócio”, analisa o pesquisador Artur Pires, da Universidade Federal do Ceará.
Enquanto isso, moradores seguem vivendo entre paisagens de cartão-postal e realidades de guerra silenciosa — onde o paraíso tropical tem regras impostas por quem domina a sombra do paraíso.