
“CV, CV… é mais um dia de luta, nós vamo traficar.” O verso direto, sem metáforas, cantado por MC Poze do Rodo, não é apenas mais uma rima. Em meio a multidões, o funkeiro entoa letras sobre fuzis, ostentação e uso de drogas, enquanto arrasta jovens por onde passa. Em uma das apresentações mais recentes, na Cidade de Deus (RJ), criminosos foram flagrados ostentando armas de guerra enquanto assistiam ao show. As imagens viralizaram nas redes sociais e colocaram novamente em pauta a relação entre música e apologia ao crime organizado. A informação é do portal Metrópoles.
Poze, no entanto, não está sozinho. O rapper Oruam, cujo pai, Marcinho VP, é apontado como um dos líderes do Comando Vermelho, acumula milhões de visualizações com músicas que fazem referência explícita à facção criminosa. No clipe de Tropa do Urso, por exemplo, ele exalta o grupo de Edgar Alves de Andrade, conhecido como Doca ou “Urso”. Segundo o Metrópoles, o artista soma mais de 100 milhões de acessos em seus vídeos no YouTube — e tem forte penetração entre adolescentes e jovens de periferias.
Essa popularidade não é vista apenas na internet. Nas ruas, escolas e campos de futebol das comunidades, os versos cantados por esses artistas são repetidos por crianças com naturalidade. O que antes era restrito ao entretenimento, hoje transborda para o cotidiano como discurso legitimado. E isso tem preocupado especialistas em segurança pública.
Para o analista Leonardo Sant’Anna, ouvido pela reportagem do Metrópoles, o crime organizado se vale do entretenimento como forma de expandir sua influência e criar uma rede paralela de confiança. Ele explica que o uso da música por facções não é novidade, e que a prática visa tanto fortalecer a presença do tráfico nas comunidades quanto recrutar novos integrantes, principalmente entre os mais jovens.
Sant’Anna alerta que shows com grande movimentação financeira e penetração social acabam se tornando estratégicos para a atuação de grupos criminosos. “Esse sistema informal e robusto de economia paralela é exatamente o que o crime deseja manter”, disse. Além disso, a narrativa propagada nas letras ajuda a romantizar a violência e a vender a ideia de que o crime é o único caminho possível para jovens em situação de vulnerabilidade.
A atuação de funkeiros ligados ao crime também tem rendido prisões. Segundo o Metrópoles, uma operação da Polícia Civil do Ceará prendeu nesta semana os cantores MC Dym e MC Dick, suspeitos de envolvimento com o Comando Vermelho. Dym, que tem mais de 47 mil seguidores, lançou recentemente o clipe Discípulos de Pablo Escobar, referência direta ao narcotraficante colombiano. Já MC Dick, conhecido por ameaças em suas músicas, possui ouvintes fiéis nas plataformas digitais.
O caso de Oruam ainda motivou a criação de uma proposta legislativa conhecida como “Lei Anti-Oruam”. Protocolado pela vereadora Amanda Vettorazzo (União Brasil), o projeto propõe a proibição de shows e apresentações com conteúdo que faça apologia ao crime, especialmente para públicos infantojuvenis. A medida já inspirou ações semelhantes em outros municípios.
Leonardo Sant’Anna acredita que, apesar do nome controverso, o projeto pode ser um ponto de partida. “O Oruam é apenas uma peça no processo. O importante é que essa legislação funcione como uma política pública séria, em defesa da sociedade.”