
Nailton Reis é Neuropsicólogo clínico em Cuiabá CRP 18/7767
Mato Grosso lidera o ranking nacional de feminicídios. Em 2024, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram 47 mulheres assassinadas por razão de gênero, o que equivale a 2,5 mortes a cada 100 mil mulheres — a maior taxa do Brasil.
Poderia ser apenas mais um enredo de ficção violenta. Mas não é. É real, é cotidiano e é reincidente. Porque o Estado repete o mesmo roteiro: delegacias especializadas, botão do pânico, Patrulha Maria da Penha, campanhas pontuais e aplicativos. Mas os dados escancaram a falência da estratégia: das 47 mulheres mortas, apenas uma tinha medida protetiva em vigor.
Esses números não significam que os dispositivos não funcionam. Eles funcionam — mas só quando acessados em tempo. A Patrulha Maria da Penha, por exemplo, tem taxa de 99% de eficácia na prevenção de reincidência. O problema é que quase nenhuma vítima consegue acessar essas medidas antes de morrer.
Isso nos força a reconhecer: o Estado atua sobre a consequência, não sobre a causa. Reage, em vez de prevenir. Investe em estruturas que se anunciam como protetivas, mas que só alcançam quem já está gritando. E mesmo assim, muitas vezes, tarde demais.
Mas o que antecede o grito? O que antecede o feminicídio?
A resposta está na formação social do sujeito masculino. O homem que mata não virou agressor no momento do crime. Ele foi construído para dominar, controlar, punir. Aprendeu desde cedo que homem não chora, não perde, não falha. Cresceu sem aprender a nomear seus sentimentos, a lidar com frustração, a ceder, a conversar. Quando a realidade escapa do controle, ele explode — e quem paga é a mulher.
E quando esse homem entra em crise, quando começa a ruir por dentro, não há política pública emocional para acolhê-lo.
Não existem campanhas que o ensinem a sentir. Não existem espaços escolares que promovam afeto. Não há cartilhas dizendo a ele que tudo bem demonstrar fraqueza, que tudo bem pedir ajuda. O que existe é o silêncio. E depois do silêncio, o colapso.
Hoje, o único espaço de acolhimento emocional institucionalizado que os homens acessam em crise é o CAPS, especialmente o CAPS‑AD. E mesmo assim, já em estágio avançado de sofrimento psíquico. Segundo dados nacionais, mais de 80% dos atendidos nesses centros são homens, a maioria adultos entre 30 e 60 anos, desempregados, com baixa escolaridade, sem vínculos afetivos sólidos. Homens que, ao perderem o controle, recorrem às drogas ou ao álcool como única forma de fuga.
E muitos dos que nem chegam ao CAPS, terminam nas ruas.
Nos registros do CREASPOP, serviço de referência para a população de rua, a maioria dos atendidos são homens. Homens que abandonaram sua trajetória de vida — ou foram abandonados por ela. São os que quebraram em silêncio. Os que não explodiram contra alguém, mas implodiram por dentro. E agora vivem à margem, invisíveis, desamparados, rotulados como problema social.
Esse é o fim do ciclo da masculinidade tóxica. Um ciclo que começa com a negação do afeto e termina no feminicídio, no suicídio, na dependência química ou na rua.
O Estado falha — de novo.
O que deveria ser um combate estrutural vira mais uma política de contenção. O que deveria ser educação emocional nas escolas, vira aplicativo. O que deveria ser grupo de acolhimento, vira medida judicial. O que deveria ser formação de vínculos, vira cela, vira caixão.
É justamente diante desse cenário que o Instituto Mentes Plurais nasce — como um dispositivo clínico, ético e social voltado para acolher as dores que a estrutura pública não alcança. Criamos grupos de escuta, atendimento psicológico e espaços de reflexão para homens em crise, homens que precisam repensar sua trajetória antes que ela termine no fundo do poço. E o meu Instagram também foi construído com essa missão: levar informação acessível sobre saúde mental masculina, masculinidades e afeto, para que mais homens e mais famílias possam entender onde começa essa ruptura — e como preveni-la. Mas é preciso dizer com clareza: isso ainda é pouco. Nenhuma clínica isolada, nenhum perfil de rede social, por mais comprometido que seja, pode substituir o papel do Estado. É o poder público quem tem responsabilidade legal e estrutural de agir com força, escala e urgência para transformar essa realidade.
Se cruzarmos os dados do feminicídio com os dados do CAPS e do CREASPOP, veremos que os homens que não se matam estão nas ruas, estão nos CAPS-AD, sem projeto de futuro, sem rede de apoio, sem saúde emocional.
E o Estado? Continua apontando o dedo para o ato, e não para a formação do autor. Continua agindo depois da tragédia, e não antes da ruptura.
Essa tragédia não deveria ser real.
Essa violência não deveria ser cotidiana.
Essa dor não deveria estar no almoço de domingo, no noticiário da manhã, na manchete da semana.
Mas está.
E enquanto o Estado não entender que combater o feminicídio é também cuidar da saúde emocional masculina, a cena vai se repetir.
Mais uma mulher será assassinada.
Mais um homem cairá no abismo.
E mais um jornal vai noticiar como se fosse só mais uma estatística.
Mas não é.
É a vida real em Mato Grosso.
Um Estado onde o filme de terror não passa no cinema.
Passa na televisão.
Todo santo dia.
Nailton Reis é Psicólogo Clínico com especialização em Neuropsicologia Cognitiva Comportamental, Avaliação Psicológica e Psicologia do Trânsito em Cuiabá-MT
CRP 18/7767