
Nos 18 dias entre a morte do papa Francisco e a eleição de seu sucessor, Leão 14, a Igreja Católica na Itália viveu um episódio digno de um romance de mistério. No centro da história está a brasileira Aline Pereira Ghammachi, de 39 anos, ex-madre-abadessa do Mosteiro San Giacomo di Veglia, perto de Veneza. Deposta de seu cargo após uma denúncia anônima enviada ao Vaticano, a religiosa amapaense viu sua saída provocar a fuga de 11 freiras e acirrar os debates sobre poder, preconceito e machismo dentro da Igreja.
Formada em administração de empresas e ex-tradutora de documentos sigilosos do Vaticano, irmã Aline chegou à liderança do mosteiro em 2018, aos 33 anos — tornando-se a abadessa mais jovem da Itália. Sob sua gestão, o mosteiro abriu as portas para a comunidade local, criou uma horta para crianças com autismo e passou a acolher mulheres vítimas de violência.
Mas, em 2022, uma carta anônima endereçada ao então papa Francisco a acusava de manipular religiosas e ocultar informações financeiras. A primeira inspeção, realizada em 2023, recomendou o arquivamento do caso. No entanto, meses depois, o processo foi reaberto, supostamente a pedido de frei Mauro Giuseppe Lepori, líder da ordem à qual o mosteiro pertence. Segundo a brasileira, Lepori a desqualificava por sua aparência. “Ele dizia que eu era bonita demais para ser abadessa, ou mesmo para ser freira”, relatou.
Em 2024, uma nova visita apostólica concluiu, após uma breve conversa, que Aline seria “desequilibrada” e temida pelas irmãs. A decisão de afastá-la veio às vésperas da morte do papa Francisco. No mesmo dia do falecimento, uma nova abadessa de 81 anos assumiu a comunidade, alegando representar o pontífice argentino, que já não estava mais vivo.
Sem direito a defesa ou processo formal, a brasileira recusou-se a isolar-se em outro convento, como foi orientada, e deixou o mosteiro no dia 28 de abril. No dia seguinte, cinco freiras abandonaram o local e procuraram a polícia. Desde então, 11 das 22 religiosas deixaram a comunidade. “As que ficaram são as irmãs anciãs, de 85 anos, 88 anos”, contou Aline.
O caso ganhou repercussão na imprensa italiana. A rede RAI produziu uma reportagem especial, questionando: “Bela demais para ser abadessa?” Já o jornal Corriere del Veneto noticiou que uma produtora alemã prepara um filme inspirado na história. Freira Maria Paola Dal Zotto, uma das que deixou o mosteiro, declarou publicamente: “Foi inaugurado um tratamento medieval, um clima de calúnias e acusações infundadas contra a irmã Aline.”
Frei Lepori negou irregularidades e afirmou à imprensa que a ex-abadessa estaria “manipulando a mídia”. Aline, por sua vez, move recurso junto ao Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, a mais alta corte do Vaticano. “Eu não tive direito de defesa. Porque eu sou mulher, jovem e brasileira. Isso fala muito”, declarou.
Enquanto isso, um benfeitor do mosteiro cedeu uma villa para que Aline e as irmãs que fugiram possam seguir suas atividades sociais e religiosas. “Vamos começar do zero. Amamos a Igreja e queremos seguir nosso trabalho e oração, mesmo que fora da congregação.”
Sobre a eleição de Leão 14, a religiosa se disse esperançosa. “É um papa canonista, entende de direito canônico. E luta pelos direitos humanos. Não peço nada além da lei.”