
Por Fernanda Prates
Por muito tempo, os povos indígenas foram mantidos à margem dos grandes eventos turísticos de Mato Grosso. Em 2025, esse cenário começa a mudar visivelmente na FIT Pantanal — e parte dessa transformação tem nome: Aldeia Wazare.
Liderada pelo cacique Rony Azoinace, um dos principais articuladores do turismo sustentável em terras indígenas no Brasil, a Aldeia Wazare se tornou referência na construção de pontes entre a cultura tradicional e o turismo moderno. Nesta edição da Feira Internacional do Turismo do Pantanal, a Wazare ocupa, pela primeira vez, um espaço no salão principal — um marco histórico não só para Campo Novo do Parecis, mas para toda a luta dos povos originários por visibilidade, respeito e autonomia.
“Quando começamos, lá em 2009, ainda era considerado crime falar em turismo indígena. Não havia respaldo legal da Funai, e os próprios municípios tinham receio de apoiar. Mesmo assim, enfrentamos tudo com coragem”, relembra o cacique Rony. A luta culminou em 2015 com a criação da Instrução Normativa 003 da Funai e, anos depois, em 2022, com a conquista da primeira carta oficial de anuência para operar turismo em terras indígenas no país.
Hoje, essa caminhada se reflete na força da Aldeia Wazare como destino turístico que promove não apenas belezas naturais, mas também vivências culturais profundas. A Wazare é o ponto de partida de um circuito que envolve outras sete aldeias Haliti-Paresí: Salto da Mulher, Salto Belo, Utiariti, Quatro Cachoeiras, Ponte da Pedra, Rio Sacre e Chapada Azul. Além delas, o município abriga outras comunidades como Bacaiuval, Morrinho e Vale do Papagaio, todas com potencial turístico e cultural.
PREFEITURA COMO PARCEIRA
O avanço dos indígenas na FIT 2025 só foi possível graças ao envolvimento direto da Prefeitura de Campo Novo do Parecis. Segundo Jenifer Ketillen, coordenadora de comunicação da prefeitura, o município montou um estande completo com pinturas ao vivo e materiais de divulgação preparados pelos próprios indígenas. “Eles sabem se comunicar, sabem fazer o marketing. Não estamos aqui por eles, estamos com eles. São eles que recebem, que abordam, que mostram ao mundo quem são”, destacou.
O coordenador de turismo do município, Cláudio Roberto — mais conhecido como Maestro — reforça que o apoio da gestão municipal foi decisivo: “Eles não tiveram uma vírgula de apoio do Governo do Estado. Foi a prefeitura que garantiu transporte, hospedagem, estrutura. E hoje, estão aqui, ocupando espaço com dignidade”.
A inserção no salão principal da feira, tradicionalmente reservado a grandes operadoras de turismo, é simbólica. “É a primeira vez que eles chegam com esse destaque. Até então ficavam de fora das apresentações principais. Esse ano foi diferente. Campo Novo chegou chegando, e quem representa isso são os povos indígenas”, completa Cláudio.
TURISMO COMO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Para o cacique Rony, o turismo é uma ferramenta essencial para preservar a cultura e gerar renda sustentável. O trabalho da Wazare e das demais aldeias inclui não só experiências culturais, como danças, rituais, culinária e artesanato, mas também demonstrações de força no agronegócio: os indígenas cultivam cerca de 20 mil hectares e estão preparados para o comércio e a indústria.
Além das vivências locais, a aldeia já recebeu visitantes de países como Alemanha, Canadá, Chile e Argentina. “A gente mostra o Brasil indígena real, vivo, atual. E o mundo quer ver isso. Mas para que esse trabalho ganhe projeção, é essencial investir em divulgação e quebrar o preconceito que ainda nos cerca”, ressalta Rony.
A coordenadora Jenifer Ketillen concorda: “Em Campo Novo eles são conhecidos, respeitados. Mas precisamos de um olhar nacional e internacional. A cultura indígena tem um potencial gigantesco, e a FIT é o palco ideal para isso”.
RAÍZES E FUTURO
Mais que expositores, os indígenas de Campo Novo do Parecis se colocam como protagonistas de sua própria narrativa. A presença da Aldeia Wazare na FIT Pantanal 2025 é um ato político, cultural e econômico. É o reflexo de uma geração que se forma, estuda, produz e se conecta sem abrir mão das raízes.
O pioneirismo da Wazare, que enfrentou os “trancos e barrancos” de um sistema que historicamente exclui os povos originários, agora inspira outras aldeias a seguirem o mesmo caminho. E, como disse o cacique Rony, “turismo não é só visitação, é construção de pontes”.
SEBRAE MT E O MAPA DAS NOVAS ROTAS
O avanço do etnoturismo no estado tem também o dedo do Sebrae Mato Grosso, que vem se consolidando como um dos principais agentes de fomento ao turismo de base comunitária. Durante a FIT 2025, a entidade apresentou seu plano de atuação ampliado: 70 rotas mapeadas, com foco especial no fortalecimento de experiências que integrem cultura, natureza e pequenos negócios.
“A formalização do compromisso com o etnoturismo é mais do que uma diretriz estratégica. É um símbolo. Um encontro de culturas, um respeito à natureza e ao empreendedorismo local”, afirmou Lélia Brun, diretora superintendente do Sebrae/MT. Segundo ela, o Sebrae está construindo um ecossistema que une etnoturismo, afroturismo e agroturismo, promovendo o que chama de “integração de origens”.
Esse trabalho se reflete diretamente na geração de renda nas aldeias Haliti-Paresí. A produção de artesanato, a recepção de visitantes, a venda de produtos e serviços e até o agroindígena — com cerca de 20 mil hectares plantados em Campo Novo — mostram que tradição e desenvolvimento sustentável podem caminhar juntos.
UMA NOVA NARRATIVA PARA O TURISMO BRASILEIRO
O que a Aldeia Wazare propõe — e já pratica — é mais do que turismo. É uma narrativa viva de reconexão. Em tempos de urgência climática, desigualdade social e apagamento histórico, o etnoturismo surge como uma alternativa de experiência com consciência. Não se trata de folclore, mas de vivência. Não se trata de caridade, mas de parceria econômica, protagonismo e respeito.
A vivência em Campo Novo do Parecis já atraiu visitantes da Alemanha, do Canadá, do Chile e da Argentina. As histórias se espalham. Os olhos se voltam. E a FIT Pantanal 2025 marca o início de uma nova fase.
“A gente não quer que a nossa cultura seja só lembrada em livros de escola. A gente quer que ela seja vivida, respeitada, sentida. E o turismo é o caminho”, conclui o cacique Rony, olhando para o futuro com a sabedoria de quem conhece bem suas raízes.