
Com sua cor vermelha intensa e sementes que lembram olhos humanos, o guaraná é um dos frutos mais emblemáticos da Amazônia. Para os povos originários, ele não é apenas alimento — é um elo sagrado entre natureza, espiritualidade e resistência. E ao longo dos séculos, esse fruto fascinante atravessou rios, fronteiras e culturas até se tornar um símbolo nacional brasileiro.
Um legado indígena enraizado na floresta
Originário da região entre os rios Andirá e Maués, no Amazonas, o guaraná (Paullinia cupana) é cultivado há gerações pelos Sateré-Mawé, povo que considera o fruto uma dádiva espiritual. A lenda conta que o guaraná nasceu dos olhos de um jovem guerreiro, morto injustamente, e transformado pelos deuses para alimentar e proteger sua aldeia.
A palavra “guaraná” vem do tupi wara’ná, que significa “olho da floresta”. A aparência única do fruto maduro — sementes negras envoltas por polpa branca — é um lembrete visual dessa ancestralidade.

Cultivo que respeita a floresta
Em vez de monocultura, os Sateré-Mawé mantêm o cultivo tradicional do guaraná em sistemas agroflorestais, onde ele cresce entre açaí, castanheiras e outras espécies nativas. Esse modelo, além de preservar a biodiversidade amazônica, garante a fertilidade do solo e a saúde do ecossistema.
De setembro a dezembro, os frutos são colhidos manualmente. Suas sementes passam por torrefação e moagem, dando origem a um pó fino, moldado em bastões ou vendido a granel. Um dos avanços recentes é a criação de variedades resistentes a pragas, como o clone CMU-871, que aumentam a produtividade sem uso de veneno.
Do bastão à garrafa: o guaraná como símbolo do Brasil
Nos anos 1920, o guaraná ganhou as prateleiras e os lares brasileiros em forma de refrigerante. A criação do Guaraná Antarctica, em 1921, abriu caminho para marcas como Brahma, Kuat e tantas outras. O sabor doce e borbulhante virou sinônimo de brasilidade — e energia.
Em 1994, o governo federal reconheceu o guaraná como um dos frutos-símbolo do Brasil, ao lado da jabuticaba e do pau-brasil. Desde então, o fruto figura em campanhas publicitárias, embalagens de produtos, moedas comemorativas e até na Copa do Mundo.
Energia natural com respaldo da ciência
Mais potente que o café, o guaraná possui o dobro ou até o triplo de cafeína por grama. Mas não se trata apenas de um estímulo imediato: ele contém guaranina, uma forma de liberação gradual que prolonga os efeitos sem provocar picos de ansiedade.
Estudos científicos apontam que o guaraná auxilia na concentração, resistência física e disposição mental. Além disso, é rico em antioxidantes, como catequinas e taninos, que combatem o envelhecimento celular e fortalecem o coração. Na medicina tradicional indígena, o fruto também é usado para tratar febres, dores de cabeça e problemas digestivos.
Uma economia que nasce da terra
O guaraná movimenta comunidades inteiras no Amazonas. Mais de 70% da produção brasileira vem do estado, com destaque para Maués, onde cooperativas como a Cooperguarana mantêm a tradição e investem em tecnologia.
Na região, o guaraná é mais do que plantação — é celebração. O Festival do Guaraná, realizado todos os anos, reúne dança, rituais, culinária e turismo, projetando a força cultural e econômica desse tesouro amazônico.
Desafios e caminhos sustentáveis
Apesar do sucesso, o guaraná enfrenta ameaças reais. O avanço da monocultura e o desmatamento pressionam os sistemas tradicionais de cultivo. Além disso, a biopirataria ainda é uma preocupação para os povos indígenas, que reivindicam a proteção legal do seu conhecimento ancestral.
A certificação de origem, conquistada pelo guaraná de Maués em 2016, é um passo importante. Ela garante rastreabilidade e proteção comercial. Mas, para além disso, é urgente garantir que as políticas públicas e o consumo consciente sustentem essa cadeia produtiva.
Tradição viva
Em tempos de aquecimento global e debates sobre economia verde, o guaraná pode ser exemplo de como tradição e inovação podem coexistir. A COP30, que acontecerá em Belém, será palco ideal para mostrar como o Brasil pode liderar com soluções sustentáveis que respeitam a floresta e os povos que nela vivem.
E enquanto o mundo se encanta com as propriedades do guaraná, no coração da Amazônia, os Sateré-Mawé seguem ralando bastões com línguas de pirarucu, honrando a ancestralidade, a terra e o futuro.